30 July 2007

Aborto, soberania e mudez das mulheres

Um dos aspectos mais interessantes quando se discute o aborto hoje é o fato de que os principais participantes da discussão são homens. Os mesmos que - é preciso dizer- nunca irão parir, jamais serão mães, não abortarão. Eles falam, enquanto as mulheres fazem. Não devemos com isso supor que os homens não deveriam participar de tais discussões, mas perguntar por que a palavra deles se mostra prevalente nessa questão. Devemos perguntar por que eles parecem mais interessados que as imediatamente interessadas que continuam fazendo ou não abortos, tendo ou não seus filhos. (...)



Por que as mulheres esperam caladas por todas as decisões políticas, inclusive por aquelas que as tocam diretamente? A legalização do aborto não virá dos donos do poder e dos discursos que comandam e decidem sobre o corpo das mulheres. Elas, em silêncio, agem como se não fossem donas e senhoras de seus corpos. E, de fato, não o são enquanto continuam na velha economia da sedução, da prostituição, da maternidade, da vida doméstica, do voyeurismo do qual são a mercadoria. (...)




O que realmente assusta quando se fala em aborto é o que virá com a fala das mulheres e que, dia após dia, é praticado em silêncio nas clínicas deste país. É o fato e a prática cotidiana que se realiza de modo soberano, ainda que clandestino. A soberania daquele que emite uma opinião fundamentada em seu próprio nome e por sua própria voz é análoga à soberania que uma mulher pode ter sobre seu corpo. Aquele que pode falar pode fazer porque cria, por meio de sua fala, valores, relações e consensos. (...)




Que mulheres possam tomar suas decisões e sejam amparadas pela Justiça é algo que uma sociedade que se construiu pela submissão das mulheres e pela superioridade dos homens não pode suportar sem uma ampla renovação dos costumes. Hoje, as mulheres que possuem algum poder proveniente do dinheiro ou da liberdade sobre a própria vida praticam o aborto soberanamente. As que não têm poder nenhum -aquisitivo, intelectual ou outro poder que garanta a autoconsciência quanto à pertença de seus corpos- são vítimas de uma sociedade que não prevê espaço para uma prática que deveria ser medida a partir da soberania da mulher sobre seu corpo e sua vida. Homens desde sempre souberam disso e imperaram sobre seus próprios corpos e sobre todos os corpos que lhes prestaram serviços - também os corpos de seus empregados, de seus filhos e suas filhas.

Perder o exercício do poder sobre o corpo das mulheres é o que assusta homens de mentalidade arcaica hoje em dia. Assusta as instituições autoritárias. Ter soberania sobre o próprio corpo talvez também não interesse a todas as mulheres, pois isso exige uma responsabilidade para a qual talvez não estejam individualmente preparadas.

Por Marcia Tiburi - Publicado na Folha de São Paulo.

23 July 2007

Savannah - parte 4

Savannah deu tempo ao tempo. Esperou folhas das árvores se tornarem verdes, amarelarem, se tornarem marrons e cairem. E todas as árvores ficarem secas. Aparentemente sem viço, mas cheias de força para um novo começo.

Para Savannah isso durou apenas uns poucos dias. E ela decidiu mudar-se.

Reuniu os empregados e deu as ordens. Que eles arrumassem tudo, arrastassem os móveis e se livrassem daquela poeira estanque que se acumulou nos cantos escuros, para as quais ela sempre fechou os olhos. Mandou que eles tirassem os quadros da parede e os separou em dois grupos: os que valiam a pena serem carregados durante a mudança e os que deveriam ser queimados.

Sim, Savannah não deixaria nada para trás. Nenhum objeto, nenhuma marca, tudo que lembrasse ela naquele lugar deveria sumir.

Ela permaneceu junto à grande pilha de obras de arte, móveis, utensílios, roupas e uns tantos bens que tinham significado apenas para ela, contemplando. Depois, arremessou o lampião cheio de querosene sobre aquele monte de nada e viu o fogo surgir, crescer, arder e criptar. E viu a imensa pilha de coisas se tornar um grande amontoado de nada. E quando o vento vindo do sul soprou, como que esperando seu momento de agir, tudo voou para longe, se perdendo na imensidão daquele lugar.

Savannah olhou as carroças carregadas com o que ela e apenas ela decidira que valia a pena levar para o outro tempo. Soltou os cabelos e rasgou as mangas do vestido simples, querendo assim ser simples novamente. Subiu na primeira carroça, a que transportava seus bens pessoais e de lá de cima, arremessou um outro lampião, desta vez para dentro da casa que tinha sido seu lar durante todo o tempo da batalha.

Os empregados gritaram, desesperados por verem aquela grande e imponente fortaleza de vento começar a ser tomada pelo vermelho intenso. Mas nada fizeram para combater o fogo. Savannah não esperou que a casa viesse a baixo. Deu com o chicote nos bois que carregariam sua carroça e olhou para o além.

Foi tudo tão rápido, tão inesperado para os outros, que quando estiveram lá, poucas horas depois de sua partida, não havia nenhuma marca de que em qualquer tempo alguém tivesse habitado por ali, fincado raízes e plantado árvores. Era apenas um grande vazio.

Savannah conduziu por muito tempo. Rumo ao novo lugar, onde ela buscaria um novo começo, da velha história de tanto tempo. Mas dessa vez, ela era nova. A outra Savannah pereceu sob o fogo. E um vento sul soprou. Sozinho.