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Por que as mulheres esperam caladas por todas as decisões políticas, inclusive por aquelas que as tocam diretamente? A legalização do aborto não virá dos donos do poder e dos discursos que comandam e decidem sobre o corpo das mulheres. Elas, em silêncio, agem como se não fossem donas e senhoras de seus corpos. E, de fato, não o são enquanto continuam na velha economia da sedução, da prostituição, da maternidade, da vida doméstica, do voyeurismo do qual são a mercadoria. (...)
O que realmente assusta quando se fala em aborto é o que virá com a fala das mulheres e que, dia após dia, é praticado em silêncio nas clínicas deste país. É o fato e a prática cotidiana que se realiza de modo soberano, ainda que clandestino. A soberania daquele que emite uma opinião fundamentada em seu próprio nome e por sua própria voz é análoga à soberania que uma mulher pode ter sobre seu corpo. Aquele que pode falar pode fazer porque cria, por meio de sua fala, valores, relações e consensos. (...)
Que mulheres possam tomar suas decisões e sejam amparadas pela Justiça é algo que uma sociedade que se construiu pela submissão das mulheres e pela superioridade dos homens não pode suportar sem uma ampla renovação dos costumes. Hoje, as mulheres que possuem algum poder proveniente do dinheiro ou da liberdade sobre a própria vida praticam o aborto soberanamente. As que não têm poder nen
hum -aquisitivo, intelectual ou outro poder que garanta a autoconsciência quanto à pertença de seus corpos- são vítimas de uma sociedade que não prevê espaço para uma prática que deveria ser medida a partir da soberania da mulher sobre seu corpo e sua vida. Homens desde sempre souberam disso e imperaram sobre seus próprios corpos e sobre todos os corpos que lhes prestaram serviços - também os corpos de seus empregados, de seus filhos e suas filhas.
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Perder o exercício do poder sobre o corpo das mulheres é o que assusta homens de mentalidade arcaica hoje em dia. Assusta as instituições autoritárias. Ter soberania sobre o próprio corpo talvez também não interesse a todas as mulheres, pois isso exige uma responsabilidade para a qual talvez não estejam individualmente preparadas.
Por Marcia Tiburi - Publicado na Folha de São Paulo.
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